Viva Galanga! Rei do Congo e Rei de Minas Gerais

Malungos, não somos descentes de escravos! Somos descentes de reis e rainhas africanos que foram escravizados.

O ano de 2020 foi marcado por incontáveis acontecimentos calamitosos. No recorte racial, assistimos ao assassinato de homens pretos como George Floyd, nos Estados Unidos, e de João Alberto, no Brasil. Poderíamos ter assistido a tantas outras mortes semelhantes, caso fossem registradas. Famílias negras seguem em um luto eterno, por séculos.

No entanto, ainda em 2020, observamos uma importante reação à sociedade racista contemporânea: a decisão das eleições para o cargo político de maior poder no mundo, foi consagrada pela mobilização da população negra norte americana. Nas urnas e nas ruas, por meio do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) e por meio do engajamento político desse eleitorado, ficou evidente que a resistência racial nunca esteve tão organizada, coesa e consciente. Mas tal resistência é, certamente, um eco do passado.

Hoje, vou contar a história da vida de um homem que equivocadamente foi excluído dos nossos livros de História. Um herói preto, que mudou a organização social em Vila Rica (atual Ouro Preto), durante o período do Brasil colônia, e protagonizou um dos mais notáveis capítulos sobre resistência negra da nossa História.

Galanga, era general do Exército do reino do Congo e foi posteriormente coroado Rei, após liderar com sucesso a batalha de Maramara, que pretendia restabelecer a grandeza desse reino. Viveu em Quibango, cidade onde localizava o palácio real, cercado de luxos e regalias, como qualquer rei africano ou europeu da época. Seu reinado foi considerado moderado e conciliador tanto para com os estrangeiros como para com os demais reinos e tribos vizinhas, com vistas a devolver a prosperidade para seu povo, que fora perdida em consequência do desastroso reinado do seu usurpador antecessor.

Galanga era casado com Djalô, agora rainha do Congo, e tinha dois filhos adolescentes: o príncipe herdeiro Muzinga e a princesa Itulo, que era a mais nova. Dizem que Itulo tinha uma beleza delicada, era curiosa, e a luz dos olhos do Rei.

Enquanto Galanga governava o Congo com sabedoria e aprovação de seus súditos e mantinha sua rotina dividida entre as responsabilidades de um rei guerreiro e a vida de marido e pai, o mercado do tráfico humano crescia de maneira expressiva no mundo. A África estava em constante risco. O inimigo estava sempre à espreita, com os olhos ávidos, ambiciosos e cruéis.

Certo dia, na calada noite, enquanto todos dormiam, a escuridão covarde chegou ao reino de Galanga. Financiada por portugueses, uma tribo africana vizinha invadiu o reino do Congo espalhando sangue e lágrimas por onde passou. Mataram muitos, sequestraram outros tantos, incluindo a família real.

Depois de capturados e despidos, caminharam longa distância até o litoral, amarrados pelos pescoços com correntes e argolas de ferro, em grupos de dez, nas chamadas fieiras. Aguardaram aterrorizados alguns dias na praia mesmo, comendo um preparado insosso feito de água e fubá e tomando banho em água salgada, até que o navio negreiro atracasse. Muitos sequer resistiam à essa travessia, que era regada a maus tratos, fome e medo do que experienciariam em sua nova “vida”.

Atracaram o Madalena, conhecido navio negreiro, que seria o transporte de Galanga e sua família até o Novo Mundo, para a nova colônia portuguesa, o Brasil. Ali mesmo na praia, um padre cumpre uma designação do Rei de Portugal, de batizar todos os africanos antes de embarcarem no navio. Os homens eram batizados pelo nome de “Francisco” e as mulheres por “Maria”, indiscriminadamente. Era proibido embarcar “pagãos”. Iniciava-se, ainda na praia, uma estratégia violenta de controle e dominação branca, com viés psicológico: a perda da identidade. Naquele momento, perdia-se de modo compulsório e perpétuo o lar, as tradições, o aconchego, a religião, e até o nome. Assim, morria o rei Galanga, surgia o escravo Francisco.

Subiram no navio, aos empurrões, olhando para trás, como se quisessem imprimir no fundo da memória a última vista da terra mãe, que nunca mais veriam. Galanga, dominado pela máquina escravocrata, preocupava-se com a sua família e, embora assustado, lançava olhares de apoio e presença soberana.

A viagem até o Brasil durava meses. E, durante esse período, acontecia de tudo dentro de um navio negreiro. Prova disso é que cerca de 2 milhões de pessoas morreram durante a travessia do Atlântico, ao longo de três séculos e meio, segundo Laurentino Gomes em seu livro “Escravidão – Volume I”. A carga do Madalena, um inferno flutuante, estava destinada para a região de Minas Gerais, que naquela época, encontrava-se sedenta por mãos e braços negros, para extrair das entranhas de suas montanhas, o ouro tão exigido pela Coroa portuguesa.

Os africanos na região do Congo eram conhecidos como “faiscadores” e eram os preferidos para serem enviados para a região de Minas Gerais, por terem conhecimento prévio sobre mineração.

Durante a travessia do Atlântico, Galanga sofreu o golpe mais amargo, talvez ainda mais que a própria escravidão. Durante uma tormenta, sua esposa Djalô e sua filha Itulo foram jogadas ao mar, ainda acorrentadas, assim como uma dezena de outras mulheres. A decisão do capitão foi tomada para aliviar a carga do navio e evitar que as ondas o desfizessem. As mulheres e meninas eram “peças” menos valiosas para o trabalho necessário na colônia, e por isso foram, juntamente com os escravos mais velhos, as escolhidas para morrerem afogadas no fundo do Atlântico.

Já no Brasil, mais morto do que vivo, esvaziado do espírito guerreiro que o acompanhara até aqui, Galanga e seu filho Muzinga foram vendidos para um dono de mina de ouro, chamado Major Augusto. Chegando em Vila Rica, onde passaria o resto de sua vida, Galanga foi levado junto com os demais africanos, para a mina da Encardideira, que à época era uma mina muito rentável.

Os anos se passaram e ficou evidente que, apesar da dor e revolta, a nobreza de Galanga não havia desaparecido. Havia perdido muitos amigos para o banzo, doença que atualmente seria definida como depressão severa. A maioria preferia tirar a própria vida, a permanecer naquelas condições de abuso extremo, animalescas. Outros, ficaram inválidos pelos reumatismos causados pelo ambiente frio e úmido como o mineiro, muito diferente do clima das savanas africanas.

Com sua capacidade de liderança, disciplina, educação e simpatia, em dois anos de trabalho como escravo, ganhou a confiança e o respeito dos senhores e dos escravos, que a essa altura reuniam pessoas do Congo e de outras partes da África. Passou de escravo a feitor, e nesse período aumentou a produtividade da mina sem açoitar um único escravo. Como feitor, Galanga recebia um salário modesto, que era economizado ao máximo.

Certo dia, o Major Augusto, que a essa altura era seu amigo, ofereceu a Galanga a compra da mina da Encardideira. Major Augusto, já velho e doente, estava convencido que a mina havia exaurido e imaginava que sua venda para Galanga era o melhor negócio que poderia fazer. Galanga aceitou o negócio proposto e se tornou o novo dono da mina da Encardideira, pagando o investimento a prestações.

Reflexão: Vocês já imaginaram, salvando os devidos recortes temporais e econômicos, adquirirem a empresa para a qual trabalham? Já imaginaram conseguirem isso sendo… escravo?

Neste momento é que o grande desígnio de Galanga começa a ganhar forma. Trabalhando incansavelmente na mina da Encardideira, ele descobriu um novo veio de ouro. Estava rico. A primeira medida que tomou foi comprar a alforria de seu filho Muzinga, que passou a ser seu funcionário e parceiro de missão.

O Rei Galanga e Muzinga fizeram o mesmo mais cerca de 200 pessoas, comprando suas alforrias e empregando-as na mina. Trabalhavam por um salário justo, não precisavam mais esconder as pepitas de ouro sob os cabelos e nem serem sujeitos a todo tipo de humilhação por seus senhores. Vila Rica, que antes era um barril de pólvora, prestes a estourar em constante iminência de insurreições, motivadas pelos conflitos óbvios entre senhores, senhoras e seus escravos, teve sua ordem restabelecida pela dignidade social promovida por Galanga.

Para celebrar a sua redenção e a dos seus, Galanga realizou uma congada. Novidade nas terras mineiras, a congada era uma reprodução de uma festa religiosa congolesa dedicada à Zambi-Apungo, Deus supremo da religião africana, em agradecimento à vitória conquistada nas batalhas. Neste caso, na batalha da vida. Cada um dos homens enfeitados com fitas coloridas e reluzentes, representava um rei de uma tribo vencedora e agradecida.

Na edição mineira, foi inserido um elemento inovador: o estandarte de Nossa Senhora do Rosário. Este elemento foi fundamental para que a igreja católica não reprimisse tal celebração pagã, embora travestida de católica. Havia um sincretismo perfeito. Galanga ia à frente do cortejo, coroado novamente por seus súditos. Esta congada aconteceu no dia 6 de janeiro de 1747. Desde então, a congada é celebrada no mesmo dia, em homenagem ao rei do Congo.

O prestígio de Galanga entre os pretos se estendeu ao clero e à nobreza portuguesa de Vila Rica. E, com o consentimento do Governador, foi coroado em uma celebração solene, com muita música, cor e alegria, como o Rei dos pretos de Minas Gerais. Galanga casou-se novamente, mais por pressão social do que por amor. Sua rainha sempre fora Djalô, que agora descansava na imensidão azul do oceano.

Galanga faleceu em Vila Rica aos 72 anos, de hepatite. Antes de partir, deixou mais uma marca sua nas montanhas de Ouro Preto: a igreja da Santa Ifigênia, que espia lá do alto, com a mesma humildade e negritude de Galanga, os seus súditos africanos e seus descendentes. A oralidade diz que seu corpo foi enterrado nessa igreja, porém não há tal registro.   

“Oh! Os santos pretos! Seriam eles os intercessores pela nossa infeliz terra, que regaram com seu sangue, mas abençoaram com seu amor!” Joaquim Nabuco, Minha Formação, 1900.

A mina da Encardideira, atualmente conhecida como a Mina de Chico Rei, localizada no bairro de Antônio Dias, em Ouro Preto, é uma atração turística da cidade. Ao redor da mina funcionam o restaurante Boca da Mina e uma pequena loja de artesanatos.

A mina, que foi acidentalmente redescoberta na década de 40, é gerenciada pela família Ferreira Lima, que desde então assume a responsabilidade histórica e até espiritual de manter a mina e a história de Galanga vivos.

A história da vida de Galanga também foi contada através de algumas produções: o filme “Chico Rei – Um filme sobre a Liberdade” (1985), o livro “Chico Rei”, de Agripa de Vasconcelos (1965), e pelo samba enredo da Salgueiro (1964).

Corte para o presente…

A cultura pop tem um importante papel na disseminação lúdica dos sentimos e anseios da massa, por meio de movimentos musicais, especialmente. Foi assim com os hippies que manifestaram contra uma cultura violenta, os punks que inseriram o conceito de liberdade e autonomia no cenário musical, e os yuppies que tiveram sua cultura consolidada com o hit Vogue, da Madonna, na década de 90.

Nessa toada, a conhecida cantora norte americana Beyonce, lança a música Already, música que compõe o álbum Black is King, que celebra, com a contemporaneidade do pop dançante, a cultura negra e sua ancestralidade.

Remember who you are, ooh
Real king always win, oh
Give up your bread, oh
I’ll show your people my love
It’s time already, I say it’s time already
The line already, I say, line already
Only you got the remedy, I say you got the remedy
Shine your body, shine your body (Ah)
Be your own king
Make nobody come rule your world (Yo, yo, yo, yo)
(Trecho de Already – Beyoncé, 2020)

Preto, é nobre. É Rei.

Faixa Already – Black is King, 2020

https://www.youtube.com/watch?v=agCgvFTJeR

Referências:

  1. Vasconcelos, Agripa. Chico Rei. Ouro Preto: Editora Itatiaia Limitada, 1965.
  2. Gomes, Laurentino, 1956- Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, volume 1 – 1.ed. – Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.
  3. Samba Enredo Salgueiro, 1964
  4. Filme “Chico Rei – Um filme sobre a Liberdade”, 1985.
  5. O SIGNIFICADO DE BLACK IS KING (Beyoncé) PT. 1
  6. O SIGNIFICADO DE BLACK IS KING (Beyoncé) PT. 2

Filme “Chico Rei – Um filme sobre a Liberdade”, 1985

O SIGNIFICADO DE BLACK IS KING (Beyoncé) PT. 1: Análise de todas as referências | Spartakus Santiago

O SIGNIFICADO DE BLACK IS KING (Beyoncé) PT. 2: Análise de todas as referências | Spartakus Santiago